Como reagiríamos caso alguém nos chamasse de
fundamentalistas por causa daquilo que cremos, ensinamos e confessamos?
Poderíamos nos apressar para negar a validade de tal rótulo, visto que para
muito, fundamentalismo religioso soa como intolerância, ignorância, cegueira
intelectual, fanatismo, retrocesso, aversão à ciência, entre outros descritivos
pouco recomendáveis para a nossa imagem religiosa. Estaria, portanto, justificada,
a pressa para retirar de sobre nós qualquer suspeita de alguma ligação com algo
que provoca arrepios de pavor, ou de repulsa, em muitos ao ouvirem
fundamentalismo ou fundamentalista. Sem pestanejar, reagiríamos: Eu?
Fundamentalista? Jamais!
Mas...acalmemo-nos pois não há razão para ações
apressadas e inadequadas a fim de descrever nosso posicionamento diante
daquelas duas perguntas. Se alguém nos rotular daquele jeito, a primeira coisa
a fazer será, educadamente, perguntar: por quê? Depois de ouvida a razão,
poderá até acontecer que o rótulo, em vez de parecer xingamento, ofensa ou algo
que nos deprecie, tenha sido, na verdade, provocado pela reação de alguém que
não concorde com o nosso posicionamento teológico ou doutrinário, pelo qual
damos graças a Deus por nele crer e confessa-lo. Por exemplo, se ao confessar
que creio que Jesus Cristo nasceu da virgem que o concebeu do Espírito Santo,
for chamado de fundamentalista, direi: “Sim, se isso é fundamentalismo, estarei
abraçado a ele até morrer”.
Historicamente, o fundamentalismo religioso
protestante nasceu como reação ao assim chamado modernismo, que havia invadido
o mundo protestante. Entre 1909 e 1915, foi publicada, nos Estados Unidos, uma
série de textos com o título Os fundamentais – Um testemunho a favor da
Verdade. Eram testemunhos de fé em verdades consideradas absolutas e
inatacáveis, para não acompanhar aquele protestantismo que se aliava à ciência
moderna, nascendo daí a interpretação de textos bíblicos, muitos (por exemplo,
o relato da criação do mundo e do homem do livro do Gênesis).
Por fundamentalismo designa-se hoje qualquer
espécie de conservadorismo, não só religioso, mas também político. Por isso, a
abrangência do termo tem levado a um uso indiscriminado da palavra, e muitas
vezes impreciso. Em nome do fundamentalismo, coisas muito distintas são
colocadas na mesma sacola, como a confissão de convicções fundamentais
relativas à revelação bíblica e a intolerância religiosa, que apela para o uso
da força e da violência a fim de fazer prevalecer seus pontos de vista. Por
isso, podemos também ser chamados de “fundamentalistas” em dado momento, por
causa do que cremos e confessamos diante da revelação bíblica. Não temos
qualquer problema se formos taxados de “fundamentalistas”, porque aceitamos a
Bíblia como Palavra de Deus, infalível e único fundamento e norma de fé. Porém,
jamais o seremos por advogar o uso da força e da violência para empreender algo
como, por exemplo, um “guerra santa”.
Hermenêutica bíblica.
Mas, afinal, somos ou não fundamentalistas? Como
saber? Pela forma de se posicionar diante das Escrituras Sagradas. Cremos que
“toda a Escritura é inspirada por Deus” (2 Tm 3.16), no entanto, há maneiras de
ler a Palavra revelada de Deus. Por isso, utilizamos algo chamado hermenêutica
bíblica, que nos dá os princípiosmde interpretação dos textos bíblicos.
Explicando : diante de um texto bíblico, não dizemos apenas “aqui está escrito
tal e tal coisa”, dando a questão por encerrada sem maiores considerações. Não,
nós fazemos muito mais do que isso.
Em que contexto oram ditas aquelas palavras? Como
elas se relacionam com o contexto geral de toda a Bíblia? São palavras da Lei
ou do Evangelho? Como interpretamos o que lá está escrito Pa luz da doutrina da
justificação pela fé? Essas são algumas das relevantes questões que entram em
cena na interpretação de um texto bíblico. Caso não adotarmos os princípios
hermenêuticos, corremos o risco de pender para ensinos e afirmações que
contrariam o que cremos e confessamos. Exemplificando, deixaremos de fazer
muita coisa que fazemos no sábado, pois em Êxodo 20.10 se lê que no sábado “não
farás nenhum trabalho”. É o emprego da hermenêutica que nos diferencia dos
fundamentalistas, segundo nós os entendemos. Graças a ela, não corremos o risco
de afirmar que quem não tem é porque merece não ter, pois Deus não quer, ou
então “porque lhe falta fé”. Isso é uma conclusão equivocada, provavelmente,
provocada por uma leitura fundamentalista da Escritura Sagrada.
Nós,
fundamentalistas?
Com
tranqüilidade podemos dizer: Não! Por isso, jamais seremos uma ameaça à
sociedade; pelo contrário, temos diante de nós a oportunidade de sermos luz e
sal em meio a uma sociedade que busca a verdade e , por não encontra-la, acha
tudo “sem sal” e segue procurando numa corrupção cada vez mais destruidora.
Afinal, a hermenêutica mostrará claramente como ser luz e sal. E, importante
lembrar isto, luz e sal para trazer sempre benefícios para os outros, sejam
eles quem forem, não importando também em que situação ou lugar estejam
Paulo
Moisés Nerbas, professor do Seminário Concórdia e da ULBRA
Artigo
originalmente publicado na Revista Mensageiro Luterano, em Novembro de 2010